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15 de abril de 2021

“…. naquele ano me privaram da primavera e de muitas coisas mais, mas eu, mesmo assim, floresci, levei a primavera dentro de mim, e ninguém nunca mais pode tirá-la de mim.” O amor nos tempos do cólera – Gabriel García Márquez.

Durante a primeira fase do isolamento, pude ler e reler Alberto Mussa e mergulhar na “História da Riqueza no Brasil” de Jorge Caldeira, e despertar nova compreensão da raiz étnica, cultural e histórica da relação do brasileiro com o crédito.

A corte, refugiada de Napoleão, trouxe-nos “a instalação do primeiro curso superior, com dois séculos e meio de atraso”, quando na América hispânica já havia 23 universidades. A tipografia, por sua vez, chegou atrasada 360 anos. Aqui menos de 2% eram alfabetizados, enquanto nos EUA, 70%, e na Inglaterra, 55%.

Remonta há 8 mil anos a presença de Sambaquis, ou Itaipus, sociedade anárquica, sem conceito de propriedade e para quem crimes eram só incesto e adultério. Há 3 mil anos, os Unas, Puris, Coroados, Goitacás, e à volta da Baía, os Tupis, Tamoios e Temiminós, eram todos canibais.

Em 1555, chegam os franceses e se aliam aos Tamoios; em 1567, os portugueses se unem aos Temiminós e Tupis, e destas alianças por casamento, e da poligamia, emerge a prole mameluca.

Nos anos 1700, diz Mussa, “a paisagem carioca era ocupada pela indiada”, o Tupi Guarani, era o idioma corrente, o Rio Carioca, a “origem mítica do mundo” e ao pé do Morro Cara de Cão surgiu o primeiro grupamento urbano, depois o Morro do Castelo, até Pombal proibir o idioma nativo.

Logo – a reforçar esse ambiente de diversidade – chegam os africanos das mais diversas geografias, crenças, costumes e mitologias, estrangeiros entre si: Congos, Camundongos, Angolas, Ganguelas, Benguelas, Quiçamãs, Rebolos, Monjolos, Cambindas, Cabendás e Caçanjes tomam conta da paisagem e, já nativa, nasce a Capoeira.

Esse “Melting Pot” de negros escravos, europeus colonizadores, portugueses, franceses, holandeses e os comerciantes ingleses, somados à permeabilidade social e comercial intrínseca ao indígena, parece a origem de nossa vocação para a composição/negociação, a informalidade comercial e, especialmente, a creditícia. Essa superestrutura social e política, sincrética, tem a base do seu comércio, no escambo, e pela ausência de bancos, no FIADO.

Transcrevo assim, Caldeira; “Até a vinda da Corte os negócios na colônia eram todos informais, com base na prática do FIADO e, até 1808, só era autorizada a abertura de empresas na metrópole…. a lei não permitia nem garantia as letras comerciais…

Havia equivalência no tamanho da produção brasileira (PIB) e da norte americana. Enquanto aqui havia o FIADO, nos EUA, em 1773, ainda colônia, funcionava um banco comercial, cuja principal atividade era descontar títulos, no qual os títulos de propriedade dos escravos eram usados como garantia dos negócios financeiros de toda espécie.” “toda essa diferença nas garantias fazia que as taxas de juros nos EUA fossem muito mais baixas que no Brasil.” Mas, “… O FIADO era crédito, havia cobrança de juros do devedor, as dívidas privadas eram saldadas.”

Quando se começou a permitir o comércio livre no Brasil verificamos que os comerciantes ignoravam quase que por completo o que fosse crédito…

O Rio, com a chegada da Corte, torna-se um centro de relações internacionais e econômicas, com embaixadas, comerciantes estrangeiros e incorpora os hábitos dos Palácios, da Corte. Ainda que a prática comercial se mantivesse informal, a Corte na cidade dá maior garantia aos títulos do governo que passam a encontrar tomadores.

A saga financeira brasileira

Dom João VI, em 12 de outubro de 1808, cria o primeiro Banco do Brasil e em 1817, ocorre a primeira oferta pública de ações. Entretanto, depois do retorno a Portugal, a Família Real confisca os fundos e liquida o banco, em 1829.

O reconhecimento da Independência, ainda, nos lega uma dívida, com a Inglaterra, de 5,7 milhões de Libras, das quais, apenas 600 mil chegaram efetivamente ao Banco do Brasil, sendo que 3 milhões serviram a D Pedro I, na pretensão ao trono português e para a guerra contra a Argentina.

A nossa histórica saga financeira prossegue: em 1831, a Caixa Econômica, sediada no Rio de Janeiro, não obtém sucesso. Em 1833, o segundo Banco do Brasil não consegue integralizar o capital. Em 1836, funda-se o primeiro banco privado: o Banco do Ceará, mas fecha em 1839. O Banco Comercial do Rio de Janeiro, entretanto, tem sucesso e motiva outros na Bahia, Maranhão e Pernambuco, em 1838.

Em 1851, surge o terceiro Banco do Brasil, privado, iniciativa de Mauá, que só em 1853, com o quarto Banco do Brasil, promove a primeira fusão bancária, com o Banco Comercial do Rio de Janeiro, expandindo-o para vários Estados e, em 1906, une-se ao Banco da República do Brasil, vindo assim até hoje. Em 1863, chegaram os primeiros estrangeiros: O “London & Brazilian Bank” e “The Brazilian and Portuguese Bank”, no Rio.

Em 1934, são criadas as Caixas Econômicas Federais. Em 1942, o Banco de Crédito da Borracha. Em 1945, a Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC) e, em 1946, a primeira financeira. O BNDE, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, e o Banco do Nordeste do Brasil – BNB, surgem em 1952.

Em 1964, são desenvolvidos o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), Banco Nacional da Habitação (BNH), Conselho Monetário Nacional (CMN) e o Banco Central do Brasil (BACEN). Em 1966, os Bancos de Investimento e, em 1970, a Caixa Econômica Federal, logo, as sociedades de arrendamento mercantil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), os bancos múltiplos, o COPOM e o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI).

Na década de 1990, com FHC, o Plano Real e depois o PROER, a “consolidar o sistema financeiro”, via o financiamento às fusões e incorporações privadas (MP 1182) e a liquidação dos bancos estaduais insolventes. Entre 1995 e 2000, destina-se mais de R$ 30 bilhões aos bancos brasileiros, aproximadamente, 2,5% do PIB. Algo, hoje, em torno de R$ 100 bilhões.

A SELIC

De 1997 para cá, nossa saga registra uma taxa básica (interbancária), a SELIC, que oscilou entre 15 e 30% aa, na maior parte do período, e piques, de até 49%. Porém, entre o início de 2012 e de 2014 oscilou de 7 a 9,9%, quando retorna aos históricos 2 dígitos, até outubro de 2016, e o BACEN dá início a uma sequência de 12 cortes e a SELIC recua de 14,25% ao ano até 6,5%. Depois, 6%, 4,5%, em dezembro de 2019, 4,25%; e continua, 3,75%; 3% e 2,25, sucessivamente, até o COPOM cortá-la em 0,25, para 2% ao ano, em 2020.

No ano de 2019, com uma taxa média de 5%, no ano, o nosso gasto com a dívida pública só perdeu para a Previdência, então, R$ 600 bilhões, cuja reforma logrou reduzir para 400 bi, em 2020. Em aposentadorias e pensões, o Brasil chegou a desembolsar 12,7% do PIB, contra 8,2% das economias avançadas e 7,6% das nações emergentes.

Abrimos 2016, no Brasil, com o gasto público em juros da dívida, próximo de 10% do PIB, contra 3%, dos países emergentes e, cerca de 2%, dos desenvolvidos. Já, em 2020, com a SELIC a 2%, o gasto caiu para cerca de 250 bi.

Tivemos com a pandemia um PIB negativo (4,8%), em 2020, o preço da gasolina acrescido de 8,8%, o Real a moeda que mais se desvalorizou no mundo, com o dólar ao redor dos R$ 6, tudo somado à crise da saúde a demandar gastos sociais, imperativos e urgentes.

Agrava esse cenário, o crédito na ponta alcançar taxas fora de qualquer parâmetro: pois o cartão de crédito rotativo chegou a 320% ao ano, o cheque especial, mais de 150%, e o crédito pessoal, acima de 100% em 2020, o que revela um aparente desbalanceamento entre a oferta e a demanda no mercado de capitais de financiamento.

É atribuição do BACEN independente, como uma Agência Reguladora, constituir-se em fator de equilíbrio, entre os interesses difusos do consumidor e os do oligopólio financeiro, de ordem a garantir o preço do crédito como se estivéssemos num ambiente de “Concorrência Perfeita”.

Nosso liberalismo empedernido, considerava despropositado o dispositivo constitucional, ou, qualquer outra forma, de tabelamento de juros, ou de preços.

Por outro lado, o “Anuário de Competitividade Mundial”, elaborado pela escola suíça “IMD”, coloca o Brasil como a taxa de juros mais cara entre 60 países, mas à frente de Venezuela, Mongólia e Argentina. Já no ranking de spreads dentro da taxa de juros coloca o Brasil na última posição.

Enquanto isso, o COPOM eleva, em 0,75% ao ano, a SELIC, e parece considerar mais 0,75, proximamente.

O Brasil não parece, ainda, preparado para se abrir ao mercado internacional de capitais, inclusive o cambial, e à liberdade de receber depósitos em moedas internacionais – hipótese que parece não conflitar com premissas doutrinárias do ministro da economia – praticados em Singapura, Hong Kong e no próprio EUA, os quais se encontram entre os de mais baixas taxas de juros mundiais.

Afinal – a despeito de que possa se justificar como uma medida tática de enfrentamento do impacto inflacionário, pressionado pelo câmbio, com um circunstancial e provisório aumento nos juros primários -– lembramos que o FED manteve a taxa de juros em nível próximo de zero, mesmo estimado um crescimento, por lá, de até 4,5%.

Nos preocupa que possamos retomar o secular modelo de sufocamento da atividade produtiva com um exorbitante nível dos juros e cujo corolário é a elevação do custo de oportunidade, ou seja, a taxa de atratividade para investimentos na economia real, imprescindíveis, ainda mais neste tempo de lockdowns.

Assim, transitória e circunstancial, como nos parece caber a um instrumento paliativo de política monetária, no controle da inflação, como um analgésico, a mitigar sintomas, temporariamente, sem atacar a causa, haja vista que o resultado estrutural, talvez, só seja alcançado por uma sólida e permanente austeridade fiscal e aumento da produtividade da economia. Precisaremos, em breve, de novo corte na taxa SELIC, não seu aumento.

De sorte que, depois deste doloroso tempo de pandemia, como na lírica narrativa de “O amor nos tempos do cólera”, em licença poética, poderíamos, até dizer, no “day after”:

Neste ano nos privaram da “primavera” e do custo de oportunidade da SELIC a 2%, e de muitas coisas mais, como a possibilidade de florescimento dos investimentos produtivos, em especial, os privados, inclusive, em infraestrutura. Mas, nós, brasileiros, mesmo assim florescemos. Agora, levamos essa “primavera” dentro de nós e ninguém nunca mais poderá nos tirá-la.