“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim, esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” (J. Guimarães Rosa – Grande Sertão)
Aguardo, com entusiasmo, no senado o PL 5082/16, substitutivo do deputado Pedro Paulo (RJ), e o 1397/20, mas “…a coragem” “… que a vida quer da gente”, impõe-nos, de imediato, encarar alternativa capaz, já, de socorrer os clubes, cuja situação financeira debilitada foi, dramaticamente, agravada em virtude da pandemia da Covid-19.
Assim, a lei 11.101/05 explicitou no art. 2º: Esta Lei não se aplica a:
I – empresa pública e sociedade de economia mista; II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar,
As “Entidades de Prática Desportiva Profissional” não constam da lista negativa de empresários impedidos de recorrer à Recuperação Judicial.
Cabe recordar que é (#) “vedada a possibilidade de ampliação da interpretação das normais legais restritivas”.
Adicionalmente, o artigo 27, da Lei Pelé/9.615/98, é literal, ao facultar à “Entidade de Prática Desportiva”, no & 6º, seu acesso “a programas de recuperação econômico-financeiros”, desde que adotem práticas empresariais como definidas nos demais parágrafos.
Parece de difícil contestação, que seja a Recuperação Judicial uma “espécie do gênero” programas de recuperação econômico-financeira”!
É boa prática interpretativa não deixar de atribuir significado, ou intencionalidade, à norma, ao contrário, é imperativo lhes perquirir o sentido, a finalidade. Inimaginável, portanto, excluída a RJ, das hipóteses cogitadas em “programas de recuperação econômico financeira” pelo legislador.
Registre-se que o código de 1916 conceituava no art. 22. …. associação de intuitos não econômicos… o que implicava acolhesse a “associação de fins econômicos” (**).
(**) Washington de Barros Monteiro diz que sociedades e associações são espécies do gênero corporação e que correspondem às “universitas personarum” do direito romano e que se distinguem, entre si, pelo fito de lucro daquelas e que não existe nestas.
A Lei especial do futebol, a Lei Pelé, já regulava a hipótese, quando vigente o CC/1916:
Art. 27. É facultado à entidade de prática desportiva participante de competições profissionais:
I – transformar-se em sociedade civil de fins econômicos;
ou
II – transformar-se em sociedade comercial; (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 2000))
Orientação ratificada em 2001. Art. 27. As atividades relacionadas a competições de atletas profissionais são privativas de:
I – sociedades civis de fins econômicos;
II – sociedades comerciais….; (Redação dada pela Lei nº 9.615, de 2001)
De outra feita, trouxe o novo CC, em 2002:
Art. 2.031. As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, terão o prazo de um ano para se adaptarem às disposições deste Código, a partir de sua vigência; igual prazo é concedido aos empresários.
Em 2003, a Lei especial, eliminou a obrigatoriedade, do 2031, acima, no artigo 27, § 9º É facultado às entidades desportivas profissionais constituírem-se regularmente em sociedade empresária, segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092 ….
Para estas, deixou de ser cogente o artigo 2031, posto que a Lei 10.672/03, posterior e especial, prevaleça, quanto à sua regulação.
Ademais, a Lei Especial é coerente com o código,
Art. 966: Considera-se empresário quem exerce atividade econômica organizada para produção ou circulação de bens ou serviços.
(*) “O Código Civil … se concentra …. no modo pelo qual a atividade econômica é exercida…., a empresa está considerada como “unidade econômica de produção ou atividade econômica unitariamente estruturada para a produção ou circulação de bens ou serviços”.
Parece cristalino aplicar-se, indistintamente, à Pessoa Física ou Jurídica, à Sociedade Empresária ou à Associação/Clube de Futebol, posto que a Lei Especial, à “entidades de prática desportivas profissionais”, tenha assegurado caráter empresarial.
Em minha avaliação, não é uma questão de analogia, mas do tratamento diferenciado a tipo especial de Corporação, trazida do código anterior, repristinada pela Lei Especial, a desobrigar-lhe da transformação.
Inclusive, não é de se enxergar um conflito, entre a norma geral e a especial, mas integração e complementariedade, haja vista a amplitude e abrangência do artigo 966. O Código conceituou o empresário pela atividade exercida e não por adotar esteou àquele, tipo de Corporação (**) e permitiu à legislação extravagante, Lei 9.615/98, acolher como empresária a Associação/Clube de Futebol, “entidade de prática desportiva profissional”, dispensada de transformar-se em sociedade empresária.
O entendimento resta ratificado e complementado, no artigo 966, Parágrafo Único: Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, …, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.
O Código ratifica sua opção pelo elemento substantivo, não o elemento formal, pois ressalva nas atividades intelectuais e artísticas a constituição do elemento de empresa. (**)
Veja-se, ainda, a Lei especial:
Art. 26. … entidades de prática desportiva são livres para organizar a atividade profissional ,….. & único: …aquela … promovida para obter renda. Lei nº 10.672, de 2003.
Diz mais, ainda:
Art. 972. Podem exercer a atividade de empresário os que estiverem em pleno gozo da capacidade civil e não forem legalmente impedidos.
Cabe, entretanto, o registro de duas únicas exceções, que como todas as exceções, confirmam a regra, vide, Art. 982, & único: Independentemente “de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa”.
Vejamos, então, concretamente, que o Flamengo, por exemplo, orçou para 2020, em dezembro, Receita Bruta de R$ 1 bilhão, entre Direitos de TV, Bilheteria, Patrocínios, Estádio, Marketing, emprega mil pessoas, diretamente, e grande parte de suas receitas custeiam a prestação de serviços, inclusive, salários.
Ora, considerada a legislação regente, o Flamengo, inquestionavelmente, como qualquer outro empresário, está intitulado a pleitear a Recuperação Judicial. Por outro lado, igualmente, sujeito ao pedido de falência.
É, tipicamente, uma associação/clube que, inquestionavelmente, exerce “atividade econômica organizada para produção ou circulação de bens e ou de serviços”, sem fins lucrativos, ou seja, não distribui excedentes gerados nas operações, aos sócios, os investe na atividade de “Entidade de Prática Desportiva Profissional”.
Afinal, o conflito tem fundamento no equivocado tratamento tributário diferenciado entre Entidade Desportiva Associativa (clubes) e Sociedade Empresária desportiva.
Toda atividade é sempre estimulada, por menores alíquotas. A tributação da Associação é que deve ser aplicada à Sociedade Empresária desportiva, e não o contrário.
O problema no Brasil, não é imposto de menos, é imposto demais!
Não sou Cristão Novo, há 22 anos, a Gazeta Mercantil, publicava um artigo meu: “A Hora do Clube Empresa”.
Candidato a presidente do Flamengo, em 2002, nosso Lead era ““URUBU em Nova York” e o logo era o Urubu com a camisa rubro-negra, porque pipocavam IPOs de ADRs brasileiros em Wall Street.
Eleito em 2003, em mandato tampão, organizei seminário nacional, na Gávea, entre notáveis do Futebol, do direito, da imprensa esportiva e de outros clubes que já buscavam o clube-empresa.
Havia muita reação à ideia e a eleição do presidente Lula, inicialmente, gerou muita desconfiança internacional. O clube, para dificultar, vivia a pior crise econômico financeira e política da história. Substituí o presidente que sofrera impeachment.
Amadurecemos com o Brasil. Há, hoje, investidores, fundos nacionais e internacionais, ávidos por diversificação em setores geradores de insumos da mídia, na acelerada expansão internacional dos negócios do esporte e do entretenimento, mas é preciso uma S.A., para tal.
Concluo por invocar, o despacho do juízo da 5ª Vara Empresarial do TJ-RJ, relativo à RJ da Universidade Candido Mendes, igualmente, uma associação, com atividade econômica e sem fins lucrativos, abaixo:
“Com efeito, a associação de ensino não é objetivamente excluída por nenhum dos artigos da LRF; apenas por dedução e interpretação contrariu sensu, é que se poderia extrair tal ilação do art. 1º. Porém, quando o legislador pretendeu excluir diretamente, elencou as pessoas jurídicas nos dois incisos do art. 2º.
Não há, portanto, como estender à associação civil a proibição expressa contida no art. 2º e seus incisos, (#) vedada a possibilidade de ampliação da interpretação das normais legais restritivas.”…
(**) A concepção moderna da atividade empresária se afasta do formalismo para alcançar a autêntica natureza da atividade objetivamente considerada.
O Código Civil de 2002 adotou a Teoria da Empresa, que se concentra …. no modo pelo qual a atividade econômica é exercida…., na Exposição de Motivos, a empresa está considerada como “unidade econômica de produção ou atividade econômica unitariamente estruturada para a produção ou circulação de bens ou serviços.”
Antecedente exemplo, lá citado, é o da Casa de Portugal, uma associação civil de 1928, julgado em 2008, na 4ª Turma do STJ — relator ministro Fernando Gonçalves, Resp. 1.004.910/RJ — por unanimidade — Aldir Passarinho Junior, João Otávio de Noronha e Massami Uyeda — que acolheu a decisão de primeira instância, determinando o prosseguimento da recuperação judicial.
Neste tempo em que “a vida embrulha tudo … esquenta e esfria, aperta … depois desinquieta…” Ela “quer da gente é a coragem”, da juíza da 5ª Vara Empresarial do TJ-RJ e da 4ª Turma do STJ, que acolheram a RJ, ao invocar o professor ARNOLD WALD: a ideia de empresa está “relacionada com o princípio de economicidade, ou seja, com o desenvolvimento de uma atividade capaz de cobrir os próprios custos, ainda que não existam finalidades lucrativas“ -—fls. 365.
(**) MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Parte Geral. V. 1. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1966, p. 118.
(*) Nobre Mauro, Maria da Penha . Despacho citado e transcrito, parte.
Helio Paulo Ferraz é administrador judicial (Esaj-RJ), ex-vice presidente de Futebol, vice-presidente geral e presidente do Flamengo e 2º vice-presidente da ACRJ.
Fonte: Revista Consultor Jurídico